sexta-feira, 26 de outubro de 2007


José Cardoso Pires, 1925-1998





"Janeiro de 1995, quinta-feira. Em roupão e de cigarro apagado nos dedos, sentei-me à mesa do pequeno-almoço onde já estavam a minha mulher com a Sylvie e o António que tinham chegado na véspera a Portugal. Acho que dei os bons-dias e que, embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê, e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na chávena de chá e fiquei.
Sinto-me mal, nunca me senti assim, murmurei numa fria tranquilidade.

Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: «Como é que te chamas?»

Pausa. «Eu? Edite.» Nova pausa. «E tu?»

«Parece que é Cardoso Pires», respondi então
."


in De Profundis, Valsa Lenta


1 comentário:

Anónimo disse...

vou passando, em silêncio. hoje,excepção!, deixo um excerto e um obrigado pelo que aqui [me/nos]vais recordando.
bfds
bj-e

[...]
Mas fumar ao espelho não é só ver para trás olhando de frente. É também um modo-josé de futurar, para lá do rosto que o repete e que fumega. […]

Não, nisto de alguém se interrogar ao espelho, olhos nos olhos, é consoante. Tem muitos ângulos – e tu estás aí, que não me deixas mentir. Vários ângulos. Há quem procure, santa inocência, fazer um discurso de silêncio capaz de estilhaçar o vidro e há quem espere receber, por reflexo da própria imagem, algum calor animal que desconhece. Seja como for, o que dói, e assusta, e é triste e desastradamente cómico neste exercício, é o pleonasmo de si mesma em que a pessoa se transforma. Repete-se. Se bem que com feroz independência (todo o seu esforço é esse) repete-se em imagens controversas que a possas explicar.

[…]

Aqui tens, José, o homem que te interroga. Que te fuma e te duvida. Que te acredita.

E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia.

Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?

Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela